terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Município e Municipalismo no Brasil


O Município, unidade política fundamental, é uma reunião natural e legal de famílias e de outros Grupos Sociais Naturais, radicados em determinada área geográfica e sob um governo autônomo.[1]
“A mais bella das instituições que o mundo antigo legou ao mundo moderno”, na frase de Alexandre Herculano,[2] é o Município a cellula mater da Nação, que surge da Família, cellula mater da Sociedade.[3]
“Ponto de contacto entre a Família e a Pátria”, como disse Teixeira de Pascoaes,[4] e “sede tradicional do Poder Local”, na expressão de Jacinto Ferreira, é o Município, segundo este último, não somente um “conjunto de edificações”, mas, antes e acima de tudo, uma “comunidade de famílias”.[5]
Autêntica família de famílias, é o Município, pois, como bem observou René Penna Chaves, “um grupo natural da sociedade, constituído por um conjunto de famílias, ligadas entre si por interesses de vizinhança e politicamente organizadas”.[6]
Como fez notar Jacinto Ferreira, “as instituições Família e Município têm uma dupla função social”, que é aquela “de servirem de base ao usufruto das liberdades concretas inerentes à Pessoa Humana” e de constituírem eficaz barreira contra os excessos e as pressões do Poder Central e de suas autoridades delegadas.[7]
O termo “Município”, em latim municipium, deriva de munus capere, sendo munus encargo, função, dever, e capere captar, tomar, receber.[8] Sua origem remonta aos antigos romanos, que denominavam Municípios a certas cidades conquistadas, a que concediam direitos e deveres apenas inferiores aos das colônias romanas, detendo seus cidadãos, os munícipes, prerrogativas comparáveis àquelas dos cidadãos romanos, podendo militar nas legiões e exercer ofícios públicos e magistraturas.[9]
Fundado por Martim Afonso de Sousa, o primeiro Município brasileiro surgiu em 1532, em São Vicente, no litoral do atual Estado de São Paulo. Ali, o recém-chegado enviado de El-Rei D. João III fez instalar a um só tempo a urbs e a civitas. Com o traçado das primeiras ruas, a distribuição de lotes, a fortificação da localidade e a edificação da Igreja, da Câmara, da cadeia e da alfândega, surgia a urbs. E, com a convocação para a eleição dos primeiros vereadores da Vila e a organização da ordem legal e administrativa, sob a superior autoridade do Capitão-mor Donatário, com o início do trabalho dos oficiais nomeados para os cargos de Justiça, surgia a civitas.[10]
Divergem bastante os historiadores ao apreciar o desenvolvimento das instituições municipais criadas no Brasil pelo povoador lusitano. Com efeito, observações restritas a uma dada região ou a algumas municipalidades têm por vezes levado os estudiosos a concluir unilateralmente, quer afirmando a onipotência das câmaras municipais, quer negando por completo o alcance da autonomia municipal na América Portuguesa, durante o chamado período colonial.[11] Mas o fato é que, como salientou José Pedro Galvão de Sousa, “a história da formação política do Brasil tem um cunho nitidamente municipalista”,[12] bastando compulsar os documentos para ver como floresceram os Municípios nos primeiros núcleos de povoamento da América Lusíada.[13]
Como enfatizou o historiador Edmundo Zenha, autor da melhor obra já escrita sobre o Município no denominado Brasil colonial, segundo a abalizada opinião de José Pedro Galvão de Sousa,[14] nos séculos XVI e XVII, o Município se apresenta à face do Governo Geral ou da Corte portuguesa “desimpedido de qualquer intermediário”.[15] Ainda como frisou o autor de  O Município no Brasil, partindo da família, aqui solidamente organizada, a única extensão estatal que os primeiros povoadores desta vasta Terra de Santa Cruz puderam nela realizar plenamente foi o Município.[16] Conforme observou Zenha, a civilização europeia firmou pé no Brasil por meio, principalmente, de dois elementos, “a família e seu reflexo, o município”.[17]
Conforme notou, com razão, Waldemar Martins Ferreira, em sua História do Direito Brasileiro, o governo das capitanias, na América Portuguesa, se contraía no governo das vilas, de modo que, se, territorialmente, as capitanias se alargavam pelos sertões adentro, administrativamente minguavam elas na vida das vilas, quase todas elas erguidas na costa marítima da Terra de Santa Cruz.[18]
Célula política da América Luso-Brasileira desde o seu nascimento, é o Município uma das mais belas e nobres instituições legadas por Portugal ao Brasil. Em outras palavras, se, como bem salientou Plínio Salgado, na obra Como nasceram as cidades do Brasil, foi a Fé Cristã, Católica, “o maior patrimônio que o Brasil recebeu de Portugal”,[19] foi o Município inegavelmente um dos maiores patrimônios que a nossa Terra de Santa Cruz recebeu da Terra de Santa Maria.
Outro dos grandes patrimônios legados por Portugal à nossa Terra de Santa Cruz é o gênio imperial lusíada, graças ao qual, como fez ver Plínio Salgado, tem o Brasil mantido, ao longo dos séculos, a sua unidade. Com efeito, como observou o autor de Primeiro, Cristo! e de Como nasceram as cidades do Brasil, este vasto Império que é a nossa Terra de Santa Cruz possui grandes e profundas diversidades regionais, assim como membros e descendentes de diversos povos do Orbe Terrestre, mas todas essas diferenciações se submetem “à ação poderosa de um formidável redutor, a trabalhar continuamente, como estatuário inspirado, na construção maravilhosa da Unidade Nacional”. Tal redutor, no dizer de Plínio Salgado,
É o gênio lusíada. É o espírito dos fundadores de um grande Império, cujo segredo se encontra nas raízes romanas e cristãs de que provém.
Tão grande tradição, pelos Brasileiros herdada dos Portugueses, constitui a força aglutinadora por excelência, reagindo contra a diversidade do meio físico, a complexidade dos aspectos étnicos e a extensão do espaço geográfico, e sustentando de pé, isento de futuras decomposições, o caráter definido de um dos maiores povos do Mundo.[20]
  Voltemos, porém, ao Município. As liberdades deste, ou, em outros termos, as liberdades comunais provam à evidência que, como ponderou José Pedro Galvão de Sousa, o nosso Brasil, longe de haver sido simples colônia de Portugal em estado de servidão constitucional, foi logo integrado no grande Império edificado pelos portugueses, fruindo dos benefícios assegurados pela Coroa Portuguesa aos seus súditos de além mar.[21]
Patrimônio da Ordem de Cristo, governado pelo Grão-Mestre desta, que era El-Rei de Portugal, e, mais tarde, um patrimônio da Coroa Portuguesa, ou, no dizer de Arlindo Veiga dos Santos, uma “Província d’El-Rei”,[22] o Brasil se tornou independente de Portugal em 1815, com a criação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves e as consequentes elevação do Brasil à categoria de Reino e fundação do Estado Brasileiro.[23] Neste sentido, no ensaio Ocorrências no ano de 1822, enfeixado na obra D. Pedro I e Dona Leopoldina perante a História: Vultos e fatos da Independência, publicada pelo Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, Plínio Salgado sublinhou que o Brasil era independente desde o dia 16 de dezembro de1815, quando foi elevado a Reino, com governo próprio  e justiça e administração próprias, gozando, a partir de tal data, de uma condição semelhante àquela da Comunidade Britânica de Nações.[24]
Como frisou José Pedro Galvão de Sousa, a Nação Brasileira que se levanta em 1822 em defesa dos seus brios e contra as injustas pressões das Cortes de Lisboa, encontrando no Príncipe D. Pedro, futuro Imperador, o arauto de suas legítimas aspirações, é a Nação orgânica, formada “após três séculos de uma institucionalização progressivamente realizada com um senso que se diria divinatório do futuro”.[25] Tem tal Nação por base, ainda conforme destacou José Pedro Galvão de Sousa, a célula política, o Município, sendo da “’coligação de municípios’ que se ergue o clamor de um povo disposto a pugnar, com ânimo varonil, pelas suas liberdades concretas negadas pelo liberalismo”.[26]
No Império, sobretudo a partir da Lei de 1º de outubro de 1828, que regulou as câmaras municipais, e do Ato Adicional de 1834, o Município perdeu grande parte de seu poder. Cônscio de tal fato, José de Alencar, em 1861, num dos seus primeiros discursos como Deputado Geral do Império pela Província do Ceará e pelo Partido Conservador, proclamou a necessidade de descentralização administrativa e de fortalecimento dos Municípios, defendendo a criação de “uma nova organização municipal no sentido de ampla descentralização administrativa” e louvando o “espírito de independência”, assim como o “zelo e o amor pelo bem público” que, em seu entender, haviam caracterizado as câmaras municipais da América Portuguesa durante os chamados “tempos coloniais”.[27]
Com o advento da República, após o golpe de Estado de 15 de novembro de 1889, a instituição municipal sofreu ainda mais violento golpe, tendo início então a sufocante ditadura dos governos estaduais, que até hoje sufocam os Municípios, anulando sua autonomia.[28]
Consoante escreveu José Pedro Galvão de Sousa, os estadistas do Império dirigiam a Nação Brasileira com base no Município, ao passo que, com o advento da República, os oligarcas passaram a exercer o seu mando nos Estados, explorando as Municipalidades.[29]
Foi em tal contexto que, na última década do século XIX e primeira da República, o médico, jornalista, escritor, sociólogo e historiador patrício Domingos José Nogueira Jaguaribe Filho, mais conhecido apenas como Domingos Jaguaribe, iniciou, na imprensa, uma autêntica “cruzada” em defesa do Municipalismo, inscrevendo, assim, o seu nome na História Pátria como o verdadeiro “Patriarca do Municipalismo”.[30] Um dos três principais fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, ao lado de Antonio de Toledo Piza e Estevam Leão Bourroul, e pioneiro de Campos do Jordão, Domingos Jaguaribe, cearense radicado na Província Bandeirante e, diga-se de passagem, republicano sincero e convicto, deu à estampa, em 1897, o seu livro O Município e a República, que, dedicado ao Papa Leão XIII e dividido em três volumes, se configura no coroamento de sua campanha em prol do Município e de sua autonomia.
Tratando, no terceiro volume de sua obra, dos principais males que afligiam o Município no Brasil do ocaso do século XIX e que, aliás, ainda afligem os Municípios brasileiros na hora presente, fez ver Domingos Jaguaribe que tais males seriam resolvidos com descentralização administrativa, autonomia municipal, uma “boa lei eleitoral, verdade financeira e mais patriotismo e menos política”[31] no sentido baixo do vocábulo.
Na obra Campos do Jordão, o presente passado a limpo, o advogado, poeta, historiador e escritor Pedro Paulo Filho transcreveu uma bela carta escrita por Plínio Salgado a 05 de maio de 1965 e endereçada a Sylvio Jaguaribe Ekman, neto de Domingos Jaguaribe. Considerando que tal carta contém as mais significativas linhas já escritas sobre Domingos Jaguaribe, reputamos ser mister aqui transcrevê-la:
Recebi com muito agrado a sua carta de 19 de março, endereçada para a redação do ‘Diário de São Paulo’, a qual só me foi entregue quando de minha estada nessa Capital, em fins de abril. Por ela, o prezado patrício me felicita pelo artigo que publiquei sobre o Paraíba e a Mantiqueira, referindo-me ao seu ilustre avô, Domingos Jaguaribe, por mim cognominado – o Pedro Álvares Cabral de Campos do Jordão.
Mas o Dr. Domigos Jaguaribe não foi apenas isso.
Espírito polimorfo, de variada cultura, não só se distinguiu no campo da ciência como psiquiatra e higienista, mas também no das atividades sociológicas e políticas.
Considero-o o patriarca do Municipalismo, pois foi o primeiro no Brasil a pôr em destaque a importância básica do Município na estrutura da Nacionalidade. 
Sob esse aspecto, muito influiu na formação do meu pensamento político, desde quando, levantando a bandeira das reivindicações municipais, fundei com o Dr. Gama Rodrigues o primeiro Partido Municipalista do Brasil e, posteriormente, coloquei como pedra angular da doutrina integralista, o Município.
Muito admirado fico, no atual momento brasileiro, quando essa idéia triunfou num movimento geral que determinou até uma reforma da Constituição, não se lembrando o nome de tão grande brasileiro, que eu colocaria como patrono do movimento.
Era ainda o Dr. Jaguaribe votado às pesquisas históricas e do seu valor temos como prova o livro que publicou sobre os Incas.
É lembrança das mais caras da minha juventude a manhã de chuva fina e fria em que, galgando os desfiladeiros do Baú, fui procurar o ilustre brasileiro em sua vivenda em Campos do Jordão para lhe pedir um trabalho a ser publicado num almanaque por mim organizado.
Encontrei-o bondoso e acolhedor, e, tendo eu apenas 20 anos, mereci dele uma palestra longa sobre problemas científicos.
Dentro de um mês, enviou-me interessantíssima monografia que publiquei. Se o neto deste grande homem tiver em seus arquivos e biblioteca dados completos da biografia de seu avô, correspondência (da qual seriam interessantes cópias) e os livros já esgotados (que eu tive e perdi na voragem de uma vida agitada) e me confiasse, ainda que por algum tempo – eu escreveria um artigo especialmente dedicado à memória do Dr. Jaguaribe...
Aí em São Paulo, há um outro admirador do Dr. Jaguaribe, que é o Dr. João Carlos Fairbanks, professor da Faculdade de Direito de Bauru e residente na Capital.
Se o prezado amigo tomasse contato com ele, poderíamos obter informações interessantes na atuação do Dr. Jaguaribe no que se refere ao Municipalismo.
Aguardando suas novas notícias, que devem ser endereçadas para a Câmara dos Deputados, em Brasília, é com o maior apreço que me subscrevo, Plínio Salgado”[32].
Inspirados pela campanha de Domingos Jaguaribe Filho em prol do Municipalismo, o Dr. Antônio Gama Rodrigues e Plínio Salgado criaram, em fins da década de 1910, o Partido Municipalista, primeira agremiação política do País a efetivamente defender os lídimos interesses do Município e que teve considerável penetração em toda a região paulista do Vale do Paraíba.
Mais tarde, Plínio Salgado colocou o Municipalismo como pedra angular de sua sólida e profunda Doutrina política, Doutrina esta que, como bem sublinhou Heraldo Barbuy, é necessária por firmar os conceitos autênticos do Homem, da Sociedade e do Estado,[33] e que se constitui, antes de tudo, como observou Francisco Elías de Tejada, numa “teoria da Tradição brasileira com traços de granítico castelo, destinado a suscitar adesões para quem queira em tempos vindouros conhecer a substância do Brasil”.[34]
Em 1948, Plínio Salgado redigiu o Manifesto Municipalista, lido por Goffredo Telles Junior na V Convenção do Partido de Representação Popular. No aludido Manifesto, consciente de que os Municípios são “os elementos naturais de que se compõe o corpo da Nação”, proclamou Plínio Salgado que “a palavra MUNICIPALISMO resume a nossa política”[35] e que “Municipalismo é o nome da nossa campanha: a campanha pelo fortalecimento dos Municípios brasileiros”, por ele chamada de “Cruzada Municipalista Nacional”.[36]
Encerramos estas linhas sublinhando que a instauração, no Brasil, de um sistema que conceda efetiva autonomia ao Município é uma condição fundamental para a existência da verdadeira representação popular, assim como para a grande obra de reconstrução nacional de que necessitamos.

Victor Emanuel Vilela Barbuy, São Paulo, 29 de novembro de 2017.







[1] Nesse sentido: Victor Emanuel Vilela BARBUY e Anderson CALIL, O Munícipio, centro das famílias, célula da Nação, in Gumercindo Rocha DOREA (Organizador), “Existe um pensamento político brasileiro?”, Existe, sim, Raymundo Faoro: o Integralismo!: uma nova geração analisa e interpreta o Manifesto de Outubro de 1932 de Plínio Salgado, São Paulo, Edições GRD,  2015, p. 207;  José Pedro Galvão de SOUSA; Clovis Lema GARCIA; José Fraga Teixeira de CARVALHO, Dicionário de Política, São Paulo, T.A. Queiroz, 1998, p. 365.
[2] História de Portugal, 8ª edição, Paris; Lisboa, Livrarias Aillaud & Bertrand; Rio de Janeiro, Francisco Alves, s/d, tomo VII, p. 25.
[3] Cf. Victor Emanuel Vilela BARBUY e Anderson CALIL, O Munícipio, centro das famílias, célula da Nação, in Gumercindo Rocha DOREA (Organizador), “Existe um pensamento político brasileiro?”, Existe, sim, Raymundo Faoro: o Integralismo!: uma nova geração analisa e interpreta o Manifesto de Outubro de 1932 de Plínio Salgado, cit., loc. cit.
[4] Arte de ser português, 2ª edição, Porto, Renascença Portuguesa, 1920, p. 59.
[5] Poder Local e corpos intermédios, Lisboa, Edições Cultura Monárquica, 1987, pp. 18-19.
[6] Tese apresentada pela Câmara Municipal de Campinas ao II Congresso das Câmaras Municipais do Estado de São Paulo em 12 a 16 de junho na Cidade de Ribeirão Preto relativa ao II item do temário: Estudo da significação e função dos Municípios e das Câmaras Municipais. Campinas: Oficinas Gráficas “Casa Livro Azul”, 1949, p. 7.
[7] Poder Local e corpos intermédios, cit., p 33.
[8] Cf. Marcus Cláudio ACQUAVIVA, Dicionário jurídico Acquaviva, São Paulo: Rideel, s/d, p. 560.
[9] Cf. Victor Emanuel Vilela BARBUY e Anderson CALIL, O Munícipio, centro das famílias, célula da Nação, in Gumercindo Rocha DOREA (Organizador), “Existe um pensamento político brasileiro?”, Existe, sim, Raymundo Faoro: o Integralismo!: uma nova geração analisa e interpreta o Manifesto de Outubro de 1932 de Plínio Salgado, cit., pp. 207-208.
[10]Cf.  José Pedro Galvão de SOUSA, Política e Teoria do Estado. São Paulo, Edição Saraiva, 1957, p. 28.
[11] Cf. Idem, Introdução à História do Direito Político Brasileiro, 2ª edição, São Paulo, Edição Saraiva, 1962, pp. 44-45.
[12] Política e Teoria do Estado, cit., p. 28. 
[13] Idem, Introdução à História do Direito Político Brasileiro, cit., p. 45.
[14] Política e Teoria do Estado, cit., p. 37.
[15] O Município no Brasil: 1532-1700, São Paulo, Instituto Progresso Editorial, 1948, p. 26.
[16] Idem, p. 132.
[17] Idem, loc. cit.
[18] História do Direito Brasileiro, Tomo I, 1ª edição, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1951, p. 92.
[19] Como nasceram as cidades do Brasil, 5ª edição, Prefácio de Euro Brandão, São Paulo/Brasília, Voz do Oeste/Instituto Nacional do Livro, 1978, p. 165.
[20] Idem, p. 20.
[21] , Introdução à História do Direito Político Brasileiro, cit., pp. 47-48.
[22] Brasil, Província d’El-Rei,  São Paulo, Jornada, 1960.
[23] Cf. Clovis Lema GARCIA, O Estado de Direito e a Ordem Constitucional do Brasil, in VV.AA., O Estado de Direito, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 1980, p. 71; Kenneth MAXWELL, Por que o Brasil foi diferente? O contexto da independência, in Carlos Guilherme MOTTA (Organizador), Viagem incompleta. A experiência brasileira: formação, 2ª edição, Editora SENAC São Paulo, 1999, pp. 186-187; Plínio SALGADO, Ocorrências no ano de 1822, in VV.AA., D. Pedro I e Dona Leopoldina perante a História: Vultos e fatos da Independência, Apresentação de Aureliano Leite, São Paulo, Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, 1972, p. 590; Idem, Conferência, Brasília, 1965, p. 1. Original arquivado no Arquivo Público e Histórico de Rio Claro.
[24] Ocorrências no ano de 1822, in VV.AA., D. Pedro I e Dona Leopoldina perante a História: Vultos e fatos da Independência, cit., loc. cit.
[25] Introdução à História do Direito Político Brasileiro, cit., p. 94.
[26] Idem, loc. cit.
[27] Discursos parlamentares de José de Alencar, Brasília, Câmara dos Deputados, 1977, p. 342.
[28] Cf. Victor Emanuel Vilela BARBUY e Anderson CALIL, O Munícipio, centro das famílias, célula da Nação, in Gumercindo Rocha DOREA (Organizador), “Existe um pensamento político brasileiro?”, Existe, sim, Raymundo Faoro: o Integralismo!: uma nova geração analisa e interpreta o Manifesto de Outubro de 1932 de Plínio Salgado, cit., p. 210.
[29] Política e Teoria do Estado, cit., p. 43.
[30] Plínio Salgado foi o primeiro a se referir a Domingos Jaguaribe como o “Patriarca do Municipalismo”, em carta que adiante transcreveremos. Isto posto, cumpre sublinhar que o termo “Municipalismo” pode designar tanto o sistema político que reconhece a justa autonomia municipal e as legítimas prerrogativas do Município quanto o movimento que luta em prol da instauração de tal sistema. É, evidentemente, tendo em vista o Municipalismo enquanto movimento que damos a Domingos Jaguaribe o epíteto de “Patriarca do Municipalismo”.
[31] O Município e a República, III volume, São Paulo, J. B. Endrizzi, 1897, p. 74.
[32] Campos do Jordão, o presente passado a limpo, São José dos Campos, Vertente, 1997, pp. 70-72.
[33] Cf. A MARCHA, Plínio Salgado falou aos estudantes da Universidade Católica de São Paulo, in A Marcha, ano I, n. 26, 14 de agosto de 1953, p. 1.
[34] Plínio Salgado na Tradição do Brasil, in VV.AA., Plínio Salgado: “in memoriam”, vol. II, São Paulo, Voz do Oeste/Casa de Plínio Salgado, 1986., p. 53.
[36] Idem, p. 4.

terça-feira, 16 de maio de 2017

O Centenário de Fátima


Há exatos cem anos, mais precisamente aos treze dias do mês de maio do ano da Graça do nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1917, ao meio-dia, Nossa Senhora apareceu, pela primeira vez, na Cova da Iria, na Serra de Aire, na Freguesia de Fátima, no Concelho de Ourém, no Distrito de Santarém, na região portuguesa de Lisboa e Vale do Tejo, diante dos três pastorinhos Lúcia, Jacinta e Francisco, iniciando aquele que foi e é, sem sombra de dúvida, um dos maiores e mais belos milagres de toda a História de Portugal, do Mundo Lusíada, da Cristandade e do Orbe Terrestre.
                Em suas luminosas Mensagens ao Mundo Lusíada, conferência dedicada à Santíssima Virgem e proferida nas comemorações centenárias da Diocese de Viseu, terra de muitos de seus antepassados paternos, Plínio Salgado, baseado nas igualmente luminosas páginas da obra Fátima: Graças-Segredos-Mistérios, de Antero de Figueiredo,[1] assim descreveu o primeiro encontro da Nossa Mãe e Rainha dos Céus com os pastorinhos, crianças tão humildes que só possuíam de seu “os rosários, tesouros que não se desvalorizam e únicos que se levam para o Céu feitos colares de estrelas”:[2]
No campo despovoado nenhum rumor. No céu, nenhuma nuvem. É meio-dia, brilha o sol de maio. As aves procuram as sombras. É nesse momento que lhes aparece, na fronde da azinheira próxima, uma linda Senhora.
Estremecem de susto os pastorinhos. Querem fugir. A Senhora (que parece da idade de uns 18 anos e resplandece numa luz dourada) tranquiliza-os:
- Não tenhais medo, que não vos faço mal.
Enquanto Jacinta e Francisco quedam estarrecidos, Lúcia, a mais velhota e a mais afoita, pergunta à encantadora Aparição:
- De onde é vossemecê?
- Sou do Céu – responde a Senhora, apontando para o Alto.
Pede-lhes que venham ali todos os dias 13 de cada mês, até outubro, prometendo revelar-lhes um segredo e transmitir uma mensagem.
Corre o mês de maio (mês de Maria); o colóquio terminará em outubro (mês do Rosário...).
Começa o Poema, que arrebata as multidões, e a multiplicação das graças entre as quais sobreleva, como nenhuma outra, a obra recristianizadora de Portugal.
É uma nova mensagem ao mundo lusíada...[3]
Sim, a mensagem da Santíssima Virgem de Fátima, que, como tudo o que vem de Deus, “tem forma de poesia puríssima e altíssima”,[4] foi e é, como a mensagem silenciosa de Nossa Senhora Aparecida no Brasil, nos albores do século XVIII, uma mensagem ao Mundo Lusíada, bem como a todo o Orbe Terrestre.
Como bem disse Plínio Salgado, este tão nobre quanto pouco conhecido Adail da Fé e do Império, “profeta incandescente e sublime de seu povo” e “encarnação viva do Brasil melhor”, nas palavras de Francisco Elías de Tejada y Spínola,[5] a mensagem da Virgem de Fátima visa, antes e acima de tudo, a conversão dos pecadores e “as preces que solicita são para que se extirpe da face da terra certo pecado que o entendimento das crianças não pode compreender”. Tal pecado é, como aduziu o autor da Vida de Jesus (Plínio Salgado), exatamente o pecado contra aquela dignidade que Nossa Senhora veio restaurar no Gênero Humano, restituindo-lhe a nobreza perdida.
O pecado que calafeta a alma, impedindo-a de receber a Luz; que endurece os corações ao ponto de se tornarem insensíveis ao pranto das esposas abandonadas e dos filhos lançados na orfandade com os progenitores vivos. Paixão que mata o sentimento da família, fonte de espiritualidade e escudo da pessoa humana contra a escravização das tiranias políticas. Cegueira que impede a contemplação das realidades sociais. Depravação que eclipsa o bom-senso, faz raciocinar segundo o egoísmo, interpretar o mundo consoante os apetites individuais e decidir conforme o interesse inconfessável. Loucura que começa desorganizando os lares e termina destruindo todas as formas da estabilidade moral e apodrecendo os fundamentos da Pátria.[6]
            É tal, no entender deste ínclito Bandeirante do Brasil Integral e Profundo que foi e é Plínio Salgado, o crime do Mundo Moderno, da civilização moderna, e
É esse crime da civilização moderna a causa da tristeza da Virgem, a Sua dolorosa preocupação, o motivo principal da Sua mensagem. Ela vê a catástrofe do mundo contemporâneo e bem sabe que por detrás das falsas bandeiras das reivindicações sociais e desses estandartes da liberdade que iludem a tantos espíritos e mesmo católicos de boa-fé, está o anseio pela expansão dos instintos e o desenfreamento da sensualidade. Para combater esse inimigo, a Senhora veio à Serra de Ourém falar aos portugueses e ao mundo. Contra tão cruel destruidor da dignidade humana, oferece-nos uma arma: a oração; um escudo: a fé; uma força: a Graça Divina; um dever: o combate sem tréguas.[7]
Não é necessário dizer que, ao falar das “falsas bandeiras das reivindicações sociais e desses estandartes da liberdade” que a tantos espíritos têm iludido, quis Plínio Salgado se referir ao comunismo e ao liberalismo, liberalismo este que, como ponderou o próprio autor de Primeiro, Cristo! e das Mensagens ao Mundo Lusíada (Plínio Salgado), é a “doença mortal da verdadeira liberdade”.[8]
Quando a Santíssima Virgem apareceu pela vez primeira na Cova da Iria, há exatamente um século, era Portugal governado pelas forças materialistas e anticristãs da antitradição e da antinação e parecia, no dizer de Plínio Salgado, que a Rainha Celeste esquecera a velha casa lusitana.[9]
Em verdade, porém, como acentuou o autor de O Rei dos reis e de A Tua Cruz, Senhor (Plínio Salgado), a Santíssima Virgem Mãe não se havia olvidado dos portugueses e da Pátria que ainda se ufanava de ser a Terra de Santa Maria. Andava Ela, com efeito, pelos campos e pelas serranias, onde residiam as reservas da Estirpe, “como as águas profundas do oceano que os inconstantes ventos da superfície jamais conseguem agitar”. Estava Ela presente à hora do Ângelus, quando os sinos das igrejas tangiam compassadamente e os pastores e lavradores se descobriam, “murmurando preces ao canto nostálgico das noras”. Nos rigorosos invernos, às horas em que os grã-finos “se desenfadavam nos teatros e salões e os homens de partido, entre baforadas de tabaco, discutiam política nos cafés”, a nossa amada “Mãe Celeste saía pelos caminhos batidos de vento gélido” e chegava às portas das humildes casas de pedra das aldeias, “onde as famílias se reuniam para conservar intangível o velho sentimento da fidelidade portuguesa”.[10]
            A pequena-grande Nação Portuguesa, gloriosa “semente de Impérios”, na expressão de Gustavo Barroso,[11] não secara, como salientou Plínio Salgado, a despeito dos “ventos internacionais do materialismo que sopravam nos quadrantes do mundo; latejava-lhe no cerne o humo vitalizador” da Tradição, tal como algumas “árvores aparentemente mortas guardam, no íntimo dos troncos e nas escondidas raízes, o segredo da seiva imperecível”. Assim, desfiavam-se “Ave-Marias” e, enquanto o frígido vento uivava nos pinheirais ou a chuva cantava longamente, “as vozes da Raça, pelas vozes humildes”, repetiam: “Santa Maria, Mãe de Deus...”[12]
            Foram, sobretudo, os humildes que não se esqueceram da Santa Mãe de Deus e que sustentaram a velha e sempre nova e gloriosa Fé dos cavaleiros e dos navegantes de Portugal.[13] Eram, no dizer de Plínio Salgado, as rudes mãos que arrancavam da terra lusitana o pão e o vinho, “nodosas e calosas do muito amanho, que vem de séculos”, que passavam,
pelos dedos gretados e ásperos, as contas do rosário, repetindo a atitude dos reis paladinos, dos reis poetas, dos reis juristas, dos reis navegadores, que fundaram a Pátria, ensinaram-na a lavrar e a cantar, outorgaram-lhe ordenações, forais e decretais, deram-lhe barcos, astrolábios, cartas de mareantes e um destino no mundo.[14]
 Foi pelos humildes dos campos e das serras, fiéis à Fé verdadeira, que, a 13 de maio de 1917, quis Nossa Senhora, Mãe de Deus e Rainha dos Céus, enviar a Sua mais veemente mensagem ao Mundo Lusíada[15] e a toda a Terra.
A 13 de maio do ano da Graça de 1951, dava-se à Nação Portuguesa, ao Mundo Lusíada e ao Mundo Católico o público conhecimento de que sua Santidade, o Papa Pio XII, determinara que o Ano Santo para o estrangeiro encerrar-se-ia em Fátima, a 13 de outubro, data, como há pouco restou dito, da derradeira aparição da Virgem na Cova da Iria. Foi noticiado, ainda, que, além das solenidades religiosas, seria realizado, em Fátima, na semana da última aparição de Nossa Senhora, o I Congresso Internacional Católico sobre a Mensagem de Fátima.
O aludido Congresso reuniu pensadores, homens de Estado, professores, religiosos, escritores, jornalistas, economistas e sociólogos do Mundo inteiro, como o Cardeal Federico Tedeschini, Legado do Santo Padre Pio XII, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. Manuel Trindade Salgueiro, Arcebispo de Mitilene, Manuel Gonçalves Cavaleiro de Ferreira, Ministro da Justiça de Portugal, Adroaldo Mesquita da Costa, Vice-Presidente da Câmara dos Deputados do Brasil, Monsenhor Fulton Sheen, Bispo Auxiliar de Nova Iorque, e o jornalista e escritor inglês Douglas Hyde, que abandonara o comunismo e se convertera graças à Mensagem de Fátima.
As palavras das pessoas mencionadas no referido Congresso foram transcritas, naquele mesmo ano de 1951, no quarto número da revista tradicionalista de cultura Reconquista, que tinha como diretores José Pedro Galvão de Sousa (para o Brasil), Fernando de Aguiar (para Portugal) e Francisco Elías de Tejada (para a Espanha).
Fátima, esta “explosão transbordante do sobrenatural neste mundo prisioneiro da matéria”, na tão feliz e tantas vezes citada expressão do poeta francês Paul Claudel,[16] é, no dizer de Fernando de Aguiar, “a grande Mensagem de Paz”, paz nas almas, paz entre os homens e os povos, e “em Fátima continua Maria a corrente maravilhosa das suas dádivas benditas de Luz e Misericórdia divinas”. Se, no dizer do autor de Gente de casa (Fernando de Aguiar), “os homens ouvirem o Seu Conselho Maternal, o mundo será salvo e a Paz reinará em todos os corações pelo hino apoteótico das conversões”.[17]
Como observou Fernando de Aguiar, Mãe de Deus e Mãe dos homens, Rainha dos Céus e Medianeira de todos os clamores e súplicas humanos, é Santa Maria “fonte de sabedoria e manancial inexaurível de Justiça e de Fortaleza cristã para todos”, sendo a Sua Mensagem em Fátima “a grande Promessa” do século XX,[18]que, aliás, permanece viva no século XXI e viva permanecerá até o Fim dos Tempos.
Consoante salientou o Cardeal Federico Tedeschini, a Santíssima Virgem Mãe foi a Portugal e falou no idioma português, mostrando ser mãe dos portugueses e amá-los,[19] e, acrescentamos nós, mostrando ser mãe dos lusíadas de todos os Quatro Cantos do Mundo e amá-los.
Portugal é, com efeito, uma “Nação de Santos”, Nação de Santos como Nun’Álvares Pereira, o Santo Condestável, santo e herói a um só tempo; como São João de Deus, um dos mais célebres e gloriosos santos da Igreja; como o Santo Taumaturgo António,[20] Santo António que, como bem disse João Ameal, é Santo António de Lisboa, Santo António de Coimbra, Santo António de Portugal, Santo António de Pádua e, “para além de quaisquer limites de nação e de lugar, como o saudou Leão XIII – Santo António de todo o Mundo”,[21] e também, é claro, como a grande Santa Rainha Isabel I.
Ademais, era Portugal, ainda em 1917, a despeito de seu (des)governo, a Nação que merecera, dentre tantos títulos, o de Fidelíssima, sendo Portugal Fidelíssimo o nome com que a História e a Igreja o conhecem e muito o exaltaram nos séculos precedentes, e era, ainda, a Nação que “sobre tantos e tão nobres títulos”, tinha, como ainda tem, tradicionalmente, o título de Terra de Santa Maria.[22]
Foi em razão de tudo isso, pois, que a Virgem Nossa Senhora, “Rainha do Mundo e da Paz”, na expressão do Santo Padre Pio XII,[23] escolheu os filhos de Portugal, como sublinhou D. Tedeschini, inspirando seus reis e seus navegantes, que A proclamaram Padroeira da Nação; e escolheu os filhos da Pátria de que nasceu a nossa Pátria porque estes se tinham mantido fiéis a Ela, “passando esta fidelidade a ser a mais bela joia” do “diadema nacional” português e fazendo com que Portugal merecesse “o título insuperável de Nação Fidelíssima”.[24] E foi, é claro, em razão de tudo isso que Nossa Senhora escolheu a Sua Terra de Portugal para nela transmitir, no inculto e belo idioma de Camões, a Sua Mensagem.
Como bem salientou D. Manuel Gonçalves Cerejeira, Cardeal Patriarca de Lisboa, Nossa Senhora do Rosário, aparecida em Fátima,[25] onde falou a um Mundo esquecido de Cristo,[26] abriu-nos, na Serra de Aire, o Seu Imaculado Coração para nele reaprendermos a imitar os mistérios, da vida, da morte e da ressurreição de Seu Divino Filho. Assim, tal como quando passou por este Mundo, em tempos que já lá vão, quando Nossa Senhora nos fala é para nos encaminhar para o Cristo, “o Único que é o Salvador”.[27]
O Ministro da Justiça de Portugal, Sr. Dr. Manuel Gonçalves Cavaleiro de Ferreira, encerrou o seu discurso no I Congresso Internacional Católico sobre a Mensagem de Fátima tratando da missão evangelizadora de Portugal e assinalando que esta “Nação talhou as suas fronteiras e forjou a sua alma” na Reconquista Cristã, quando o islamismo ameaçava submergir a Cristandade Europeia.[28] E do êxito da luta portuguesa, nasceu para a nova Nação, quando já estava em decadência por toda a Europa o Espírito das Cruzadas, o desejo de repeti-las, “por novos caminhos e diferentes meios”. Assim, o Espírito de Cruzada, assimilado como missão nacional lusitana, iria em breve
desentranhar-se em novas nações e em novas cristandades de além-mar, precisamente numa época em que o cisma da Reforma abalava a unidade do velho continente e o avanço do Oriente fazia tremer a segurança dos Estados cristãos. A História repousa na Providência.[29]
            Ainda segundo Gonçalves Cavaleiro de Ferreira, como que parece que foi o extremo ocidental da Península Hispânica e da Europa escolhido para, nas épocas de desânimo, suscitar “um renovo de energia, fazendo reluzir nas trevas o clarão dos ígneos providenciais”.[30]
            Destarte, quando novamente o Mundo foi assolado pela heresia e pela guerra, bem como pela “desordem nos espíritos e nas instituições”. E então, nos sangrentos dias da I Guerra Mundial, de Fátima ecoou sobre todo o Orbe uma admirável Mensagem de Paz,
renovando a promessa eterna dum Mundo novo se os homens souberem confiar – pedindo em fraterna interdependência o favor divino, penitenciando-se em fraterno sacrifício, amando-se na intimidade do mesmo destino e na esperança da mesma redenção.[31]
            O representante brasileiro no aludido Congresso, Deputado Adroaldo Mesquita da Costa, iniciou seu discurso enfatizando que, na abençoada Pátria de nossos Maiores, onde a Santíssima Virgem entregou ao Mundo a Sua Mensagem, quis o eminentíssimo Cardeal-Patriarca de Lisboa, “glória da Igreja e orgulho da Pátria” Portuguesa, que, ao concerto de vozes daquele Congresso, cada qual mais eloquente “nos louvores a Deus e na defesa da Sua causa”, se ajuntasse a voz do Brasil, “mais belo florão da vergôntea lusitana,” a fim de tal modo patentear à Cristandade que,
seja qual for a latitude em que se fala a língua portuguesa, se obedece aos mesmos mandamentos, se professa o mesmo credo, se cultivam os mesmos ideais e se guardam, com zelo e santo orgulho, as sagradas tradições
“daqueles que foram dilatando a fé e o império” e que “por obras valorosas se vão da lei da morte libertando”.
O Brasil está aqui presente.[32]

            O discurso de Adroaldo Mesquita da Costa se encerrou com a citação dos versos finais do soneto Em Fátima, de Olegário Mariano, que desde 1938 portava o título de Príncipe dos Poetas Brasileiros e que, entre 1953 e 1954, ocuparia o cargo de Embaixador do Brasil em Portugal. O aludido soneto seria publicado, na íntegra, no boletim A Voz da Fátima, da Diocese de Leiria-Fátima, a 13 de setembro de 1953 e é deste mensário católico que o transcrevemos:
EM FÁTIMA
Rude e áspera é a paisagem, mas que importa?
Vibra tal esplendor na luz ambiente,
Que a alma da gente em preces se transporta
Ao céu e volta pura a alma da gente.
Como que paira milagrosamente
A Santa no alto da campina morta,
Derramando dos olhos, em torrente,
A esperança que eleva e a fé que exorta.
Gente de Portugal! Ó minha gente!
Tu que em Fátima vês Nossa Senhora,
Pede-lhe consternada e reverente
Que volva os olhos aos que nela pensam
E alongue os braços de Brasil afora
Para ungi-lo na unção da sua bênção.[33]
            Não podemos concluir estas linhas sem antes recordar que, como bem evocou o Monsenhor Fulton Sheen, o dia 13 de outubro de 1917, data da derradeira aparição de Nossa Senhora na Cova da iria, é uma data de acentuado relevo na História Mundial.[34]
            Com efeito, naquele dia, em Moscou, às vésperas do dilúvio da revolução bolchevista, Maria Alexandrovitch, uma nobre senhora russa, ensinava duzentas crianças numa igreja. Subitamente, porém, um tropel de cavaleiros vermelhos entrou pelo templo, destruindo as imagens e o altar-mor e matando pisoteadas algumas crianças. Maria Alexandrovitch correu então em busca dum líder bolchevista que conhecia e disse-lhe: “Aconteceu uma coisa horrível: homens a cavalo profanaram a Igreja e pisaram aos pés crianças indefesas”. O bolchevista então disse apenas: “Já sei. Fui eu que os mandei”. Começava, assim, na Rússia, no dizer de D. Fulton Sheen, a “revolução contra Deus”,[35] revolução à qual opunha ele aquilo que reputava ser a Revolução com Deus e que é “a revolução de Maria”, cujo Magnificat é, no sentir do ilustre pensador e religioso, “um documento mais revolucionário que o Manifesto Comunista” de Marx e Engels.[36] A “revolução de Maria”, porém, é uma Revolução de amor e não de ódio[37] e que, de acordo com o significado etimológico e astronômico do termo “revolução”, que significa retorno ao ponto de partida, promove a volta do Ente Humano ao Seu Criador.
            Em Roma, naquele mesmo dia 13 de outubro do conturbado e sangrento ano de 1917, os sinos das igrejas da Cidade Pontifícia repicavam alegremente no ato de consagração de um novo Bispo, proclamando a investidura de mais um sucessor dos Apóstolos. Ninguém imaginava, contudo, que tal Bispo, Monsenhor Eugenio Pacelli, seria um dia o Papa Pio XII, “o Angélico Pastor do rebanho de Cristo”.[38]
            Ainda em 13 de outubro de 1917, em Fátima, a Santa Virgem anunciou aos três pastorinhos o próximo término da I Guerra Mundial e afirmou que, caso não houvesse arrependimento, haveria um novo conflito, ainda maior e mais sangrento, tendo falado, ainda, da necessidade de consagração da Rússia ao Seu Coração Imaculado, que levaria à conversão desta e a um período de paz no Mundo. Foi ainda em tal data, em Fátima, que a Santíssima Senhora fez o sol se destacar dos Céus e baixar sobre a Terra, diante de dezenas de milhares de pessoas,[39] num dos maiores milagres de toda a História.
            Na hora presente, hora em que o Mundo é, ainda mais do que em 1917, assolado por terríveis heresias e pelos mais graves desrespeitos à Lei Eterna; em que que cristãos são perseguidos e martirizados como há muito não o eram e em que paira sobre a Terra a ameaça dum conflito muito maior do que as duas grandes guerras do século passado, devemos voltar nossos olhos a Nossa Senhora do Rosário, aparecida em Fátima, e seguir o Seu pedido de oração, de penitência e de mudança de vida, tendo plena consciência de que, como disse a Santa Virgem aos pastorinhos, por fim o Seu Imaculado Coração triunfará!
            Seja esta a nossa singela homenagem à Santíssima Mãe de Deus, Regina Coeli et Terrae, no centenário de Sua primeira aparição na Cova da Iria, na terra de nossos Maiores, Nação de que surgiu a nossa Imperial Nação. E àqueles que estiverem lendo estas linhas nas terras lusíadas d’Europa, dirigimos as palavras finais das Mensagens ao Mundo Lusíada, de Plínio Salgado, “o mais eloquente intérprete da Brasilidade”, no dizer de Hipólito Raposo,[40] e, como tal, um dos mais eloquentes intérpretes da Lusitanidade:
Recebei minhas palavras (...), na terra de meus maiores, como um apelo do Coração do Brasil ao vosso Coração para que se conserve a unidade da Fé católica nos dois impérios da língua portuguesa que constituem um só império no sentimento cristão; e, para que se conservem, com esta Fé, as virtudes antigas da Raça e aquele universalismo civilizador baseado nos valores do Espírito, que têm sido luz em nosso caminho, força na desventura, grandeza da alma no triunfo, segurança da nossa vitalidade e fundamento do nosso porvir![41]
            Por Cristo e pela Cristandade!
            Victor Emanuel Vilela Barbuy,
            São Paulo, 13 de maio de 2017.
  






[1] Fátima: Graças-Segredos-Mistérios, 1ª edição, Lisboa, Livraria Bertrand, 1936.
[2] Mensagens ao Mundo Lusíada, 5ª edição (na verdade 6ª), in Primeiro, Cristo!, 4ª edição (na verdade 5ª),  São Paulo, Voz do Oeste; Brasília, INL (Instituto Nacional do Livro), 1979, p. 160. Na referida edição, o nome da obra, por um lapso, consta como Mensagem ao Mundo Lusíada e não Mensagens ao Mundo Lusíada, que é o seu verdadeiro título, como consta das edições anteriores.
[3] Idem, pp. 160-161.
[4] Idem, p. 160.
[5] Plínio Salgado na Tradição do Brasil, in VV.AA., Plínio Salgado: “in memoriam”, volume II, São Paulo, Voz do Oeste/Casa de Plínio Salgado, 1986, p. 47.
[6] Mensagens ao Mundo Lusíada, 5ª edição (na verdade 6ª), in Primeiro, Cristo!, 4ª edição (na verdade 5ª), cit., pp. 162-163.
[7] Idem, p. 163.
[8] Idem, p. 142.
[9] Idem, p. 158.
[10] Idem, pp. 158-159.
[11] Portugal, semente de Impérios, Rio de Janeiro, Getúlio Costa, 1943.
[12] Mensagens ao Mundo Lusíada, 5ª edição (na verdade 6ª), in Primeiro, Cristo!, 4ª edição (na verdade 5ª), cit., p. 159.
[13] Idem, loc. cit.
[14] Idem, pp. 159-160.
[15] Idem, p. 160.
[16] Citamos de memória.
[17] Fátima, in Reconquista, ano II, nº 4, São Paulo, 1951, p. 245.
[18] Idem, p. 247.
[19] A missão de Portugal no Mundo e a de Fátima na Cristandade, in Reconquista, ano II, nº 4, cit., p. 252.
[20] Idem, p. 254.
[21] Santos portugueses, Porto, Livraria Tavares Martins, 1957, p. 132.
[22] A missão de Portugal no Mundo e a de Fátima na Cristandade, in Reconquista, ano II, nº 4, cit., p. 255.
[23] Magnificat anima mea Dominum, in Reconquista, ano II, nº 4, cit., p. 250.
[24] A missão de Portugal no Mundo e a de Fátima na Cristandade, in Reconquista, ano II, nº 4, cit., p. 255.
[25] Fátima e sua mensagem, in Reconquista, ano II, nº 4, cit., p. 274.
[26] Idem, p. 272.
[27] Idem, p. 274.
[28] A Fé não é uma simples expressão emocional do espírito, in Reconquista, ano II, nº 4, cit., p. 292.
[29] Idem, pp. 292-293.
[30] Idem, p. 293.
[31] Idem, loc. cit.
[32] O Brasil está aqui presente, in Reconquista, ano II, nº 4, cit., p. 294.
[33] Em Fátima, in A Voz da Fátima, ano XL, nº 372, Leiria, 13 de setembro de 1953, p. 4
[34] Moscou, Roma e Fátima, in Reconquista, ano II, nº 4, cit., p. 301.
[35] Idem, loc. cit.
[36] Idem, pp. 302-303.
[37] Idem, p. 303.
[38] Idem, p. 301.
[39] Idem, pp. 301-302.
[40] A notável oração do Dr. Hipólito Raposo, in VV.AA., Plínio Salgado: “in memoriam”, vol. II, São Paulo, Voz do Oeste/Casa de Plínio Salgado, 1986, p. 189.
[41] Mensagens ao Mundo Lusíada, 5ª edição (na verdade 6ª), in Primeiro, Cristo!, 4ª edição (na verdade 5ª), cit., pp. 174-175.